Na rica simbologia de São Jorge, o protetor contra a inveja e o mau olhado, a inveja é uma das faces do dragão que devemos transmutar. São Jorge e o Dragão (tradição cristã)
“Não há amizades, parentesco, qualidades nem grandezas que possam enfrentar o rigor da inveja.” (Miguel de Cervantes)
O significado etimológico da palavra ‘inveja’ vem do substantivo latino invidia, que significa olhar com malícia, de soslaio. Ela é uma emoção comum a todas as pessoas e sua base é o conflito entre o ego e a felicidade alheia.
Mas como é seu movimento dentro do coração humano?
Se formos atentos, veremos que, no momento inicial da inveja, surge um clarão de admiração pelo que o outro é ou possui. Em seguida, o movimento do ego se manifesta: por que ele tem e eu não? E assim, começamos a questionar insistentemente a justiça da situação, em busca de uma explicação para o sucesso do outro.
Se não nos detivermos, o processo se inflama, pois o ego, cujo pilar é a superioridade para sobreviver, vê-se ameaçado. O amargor começa a nos envolver e, às vezes, agimos movidos por sua força, destruindo um bem real... Amizades se perdem, negócios fracassam, etc. Preferimos destruir a aceitar o fato de que o mundo é maior e tem mais possibilidades que o reino do nosso ego.
O mais incrível é que a inveja pode agir em nós sem que a percebamos, pois, muitas vezes, ela atua de modo subterrâneo, apenas no subconsciente. No trabalho, você fica sabendo que um colega vai ser promovido e receberá um significativo aumento de salário. Em casa, você assiste na televisão às imagens de uma linda mulher ou os preparativos para a festa do ano. Você sai à rua e vê uma Mercedes nova passando ou um casal apaixonado sorrindo - e você está sem um grande amor há muito tempo... Você diz que não sente inveja, mas, talvez, se observar o íntimo de seu coração, verá que algo acontece.
Na verdade, tememos a inveja, pois a religião e a filosofia sempre a colocaram como uma coisa má a ser evitada. Algo de que devemos ter vergonha. Mas por que não nos concentrar na natureza do seu impulso original, ao invés de em suas conseqüências?
Se tentarmos observar o que é esse impulso, sem estar maculado pela confusão atual do ser humano, veremos que ele deveria ter três movimentos: admirar, desejar e esforçar-se por ser. Isto é, na sua pureza, esse impulso deveria ser fonte de progresso. Ao chegar, porém, ao coração humano, cheio de mágoas e desejos, ele decai para sua forma banal, tornando-se fonte de conflito.
Por exemplo, vejo uma pessoa bem-sucedida, enquanto eu vivo com problemas financeiros. Deveria usá-la como fonte de inspiração para analisar quais foram os seus acertos, quais são as minhas dificuldades e os objetivos que posso alcançar. Deveria usá-la para fazer aflorar em mim o sentimento de Eu Sou, Eu Posso, Eu Posso Ser.
Assim, a inveja deveria nos dar o vislumbre de uma meta e a força para conquistá-la. Veja, não é que precisemos ser como a pessoa, ou ter o que ela tem, mas despertaríamos para novos horizontes. A admiração, porém, decai em preconceitos e planos de destruição, e a força, na fúria que se levanta contra o outro.
Como restaurar o sentido original do impulso da inveja?
O segredo está na palavra impulso. Um impulso é algo que nos lança. Assim, quando percebermos o surgimento da inveja em nós, não deveríamos atuar através da mente, sede do ego. Deveríamos usar esse impulso como fator de lembrança da nossa Alma, do Eu sou. Deveríamos realizar a verdadeira Yoga, isto é, a ligação com Deus.
É no Silêncio do interior de nosso ser que podemos ouvir a voz que sussurra em nosso coração, mas que não escutamos por estarmos apaixonados pela agitação da vida. Se, no momento da inveja, fizermos um recuo para esse templo interior, observaremos o que ela nos apresenta: ver novas possibilidades, enxergar nossas frustrações, desmistificar verdades sobre nós.
O problema é que esse momento de recolhimento dói e não queremos sofrer. É mais fácil entregar-se à prazerosa fúria ou à indiferença.
Aqui chegamos a um ponto crucial, pois o mecanismo da inveja é o mesmo de todas as nossas emoções negativas, como a vaidade, o ciúme, a tristeza, etc.
O mundo nos inunda de impressões através dos órgãos dos sentidos e quando tudo isso chega ao coração, tingido por nossos conceitos e mágoas, nascem as emoções negativas. Libertar-se desse processo é compreender o que a vida nos quer mostrar. A vida é um espelho que reflete nosso ser. Mas para enxergar, é preciso suportar ver todo o mundo de contradições que existe em nós.
Assim, a transformação da inveja e das outras emoções negativas está em colocar-se em conexão com a Alma, com o Eu Sou. É claro que a observação e o esforço de autocontrole são importantes, mas a real transformação ocorre apenas pela ação da Graça Divina. Só ela pode nos dar o bálsamo que acalma o coração e permite a atitude justa. Então as mágoas e inquietações se dissolvem e encontramos a felicidade de Ser, a pura felicidade que não depende dos fatores externos.
Toda noite, a Natureza nos ensina como fazer isso. Por exemplo, você está triste ou cheio de ciúme, seu coração sofre e você não vê mais sentido nas coisas. Então você adormece, e, quis o destino que o sono fosse profundo. Ao acordar, no primeiro instante, você não se lembra de nada do dia anterior. Você é alegria e pureza. Mas, um segundo depois, as lembranças voltam e o ego retoma o comando, utilizando-se de toda essa qualidade para inflamar ainda mais o ciúme ou tristeza de ontem.
Mergulhar na Alma é realizar conscientemente esse encontro com a profundidade a que o sono profundo nos leva. A dificuldade de realizar essa conexão talvez fique mais clara nos comentários que Sri Aurobindo faz sobre a atitude para não ser arrastado pela ação dos sentidos:
“Isso não pode ser feito com perfeição por uma ação da própria inteligência, por mera autodisciplina mental; isso pode ser feito através da Yoga com algo superior a ela e ao qual a calma e o autodomínio são inerentes.
E essa Yoga só pode alcançar o sucesso pela devoção, pela consagração, pelo abandono por inteiro ao Divino, ‘para Mim’, diz Krishna; porque o Libertador está dentro de nós, mas não é nossa mente, nem nossa inteligência, nem nossa vontade pessoal - elas são apenas instrumentos” 1
1. Bhagavad Gita and its Message. Sri Aurobindo.
Fonte: http://www.ogrupo.org.br/ser-12.asp#Tudo%20acontece%20para%20o%20melhor%20(Swami%20Prasnanpad)
Crédito da imagem: Por http://iberoamericana-covarrubias.com/imagenes/emblemas/envidia.jpg e http://iberoamericana-covarrubias.com/galeria.html, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1683159
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