quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A FORÇA MALEÁVEL

Conta a lenda que, ao ser perguntado por um menino se era sempre melhor mostrar-se forte e inteligente e não deixar que os outros pensassem que se era fraco e tolo, Lao Tse respondeu: “você deve mostrar que é fraco e tolo, não deixe as pessoas pensarem que é inteligente”. Confuso, o menino argumentou que a maioria das pessoas pregava que ser forte e duro era bom, e ser fraco e mole era ruim. Lao Tse perguntou qual a parte mais dura e a mais mole do corpo. 
Após o menino responder que a mais dura eram os dentes e a mais mole a língua, Lao Tse sentenciou: “olhe para mim, sou tão velho que meus dentes todos já se foram, enquanto minha língua continua intacta. As coisas moles e aparentemente fracas costumam resistir melhor aos ataques do tempo e da vida, uma árvore de tronco duro por exemplo pode ser levada por um furacão, enquanto a grama macia, permanecerá firme no chão, a água maleável é capaz de esculpir duras pedras e montanhas.” 
Lao Tse era um homem surpreendente para seu tempo. Com uma visão original de vida, ele costumava ver com facilidade onde alguém estava insistindo em uma verdade pronta e inútil que trazia dentro de si e, com isso, não percebendo a resposta óbvia e apropriada que se estampava frente a seus olhos. Somos muitas vezes como a mariposa que dorme dentro de nossas casas e, pela manhã, deseja sair para a luz do dia, mas esbarra continuamente no vidro da janela. 
Abrimos a janela ao lado e fazemos de tudo para que ela veja a saída, mas ela insiste em dar novas cabeçadas na vidraça. Se, em vez de tentar ir em linha reta em direção ao seu desejo, ou na direção que considera certa, a mariposa voasse no sentido contrário e se afastasse da janela, poderia perceber que, logo ao lado da vidraça, havia uma saída real. Mas, ela não faz isso, poucos de nós fazemos, Lao Tse fazia. E, por fazer, enxergava o óbvio, que a quase todos costuma escapar. 
O óbvio é o natural. Como maneira de ver-se livre de soluções estudadas e encontrar as naturais, Lao Tse optou ser, ele mesmo, uma pessoa natural. E buscou sempre ser fiel não apenas à natureza exterior, mas à sua natureza interna, ao propósito legítimo e original que trazia dentro de si. Sim, cada pessoa tem sua natureza particular, quando essa natureza floresce, surge com cores e aromas únicos e próprios a cada um. Quando se fala em ser natural, não se pode imitar caminhos alheios ou já prontos desde antes. Todos os rios acabam no oceano, mas o percurso de cada rio até lá é único. 
Daí a dificuldade em ser natural, todos querem ensinar como é certo comportar-se, empurram toneladas de regras, dogmas e verdades para você acatar, acreditar e seguir. Embora o que é natural flua com facilidade de dentro para fora, foram erguidas barreiras contra a natureza pessoal de cada um, não é simples voltar a ser fluente e espontâneo. Já não era nos dias de Lao Tse. Talvez por isso ele tenha sido e seja até hoje uma exceção de lucidez, uma lucidez que grita como uma fratura exposta, mas que poucos vêm por terem sido ensinados a não ver o que é natural. 
Criou-se no homem um medo do natural. Em algum lugar, no fundo dele, foi plantada a convicção de que ser natural é perigoso. E, mesmo em dias em que por ter se afastado de sua natureza o homem está tendo sucesso em destruir o mundo, mesmo em dias em que está óbvio que o grande perigo para a sobrevivência da espécie não está na proximidade dele com a natureza, mas na distância, mesmo em dias assim, o medo de ser natural, onde quer que ele esteja plantado dentro do ser humano, dá frutos em abundância. 
Lao Tse percebeu que a coisa mais revolucionária – ou a única integralmente revolucionária – era seguir a própria natureza. Escutá-la e dar espaço a ela. Quando escutamos nossa natureza, descobrimos que tudo em nós e fora de nós está em movimento. Talvez isso seja mais fácil para um chinês perceber do que para um ocidental. Gostamos muito de substantivos em nossa cultura. 
Quando transformamos algo em substantivo, o transformamos em objeto, e temos a impressão de que podemos possuí-lo, guardá-lo em um bolso ou em um cofre. Para nós, consciência tornou-se um substantivo, o que sugere uma coisa estática, que uma vez alcançada, passa a ser um patrimônio seu. 
Até o amor foi instituído como substantivo em nossa língua, mesmo que abstrato. Para o chinês, tudo é movimento, assim por exemplo, o conceito de “chi”, que é traduzido nos livros em português como energia, para o chinês tem o sentido de “fluxo vital”, algo que corre, se esse algo parar, não é mais chi. Da mesma maneira, consciência e amor são para ele experiências que só podemos almejar no contexto do fluxo vital. 
Para Lao Tse, tudo na vida está em constante movimento, e o movimento do que vemos é dependente e afinado ao movimento do Universo. E, há algo em curso, por trás desse movimento essencial do Universo e por trás de tudo o que se move nele. Esse “algo mais” é o que ele chama de Tao. Há quem traduza a palavra Tao como um “curso contínuo”, sim, o Tao está constantemente se revelando, e é a essência de tudo o que se move no Universo. E tudo se move. 
Lao Tse nunca pretendeu deixar regras para serem seguidas para se alcançar o Tao, mas atentar para sua existência e inspirar quem o lesse a ter olhos próprios para enxergá-lo diretamente. Quando você encontra sua natureza, deixa de depender de regras para saber como agir e ganha maleabilidade. 
Quem age conforme regras estudadas, não tem margem de negociação com a vida, e, muito menos, consciência do que significa uma mudança de rumo. Já quem segue a própria natureza sempre será maleável, como a língua de Lao Tse. Dará resposta personalizada a cada novo desafio e cada nova questão que lhe aparecer. Quem segue sua própria natureza não precisa de certezas, mas de contato consigo e com a vida. 
Essa é parte da mensagem que Lao Tse passou no livro Tao Te King, onde ressaltou a importância de encontrarmos nossa “face original”, uma identidade anterior a todas a máscaras que aprendemos a usar, a todas as falsas noções de nós mesmos que colecionamos durante a vida. Para Lao Tse, uma identidade adquirida nos deixa presos a um mundo ilusório de dualidades, enquanto a identidade original nos leva a uma realidade sem dualidades, logo, imune a conflitos emocionais e psicológicos. 
Ele entende ser o Tao uma essência única, formadora de tudo o que existe, e sugere que quando contatamos essa essência, nos é revelada nossa real identidade, um projeto desenhado para nós nessa vida. Ao contrário da identidade adquirida, que está sempre em disputa e luta contra algo ou contra tudo, nossa face original está em paz e integrada ao Universo. A face original respira próxima do Tao, a dimensão imutável do universo, o lugar de onde viemos; logo, ela é livre de contaminações das ideias e medos que proliferam no mundo dual. 
Para Lao Tse, essa essência do Universo é informe e vive dentro de todas as coisas manifestadas. Mas, para continuar sendo universal, não pode se identificar com nenhuma dessas coisas, nem com o bem ou o mal, com o certo ou o errado, mas viver independente e neutra em relação a tudo. Essa essência não pode igualmente ser descrita, se você disser que ela é luz, você a excluirá do escuro, se você disser que ela é boa, a excluirá daquilo que considera ruim. 
Como onipresente, ela não cabe em definições. Assim, para atingi-la, o caminho possível é o da sensibilidade, entrega e faro intuitivo. Mas, nunca acreditando em definições e ideias que vamos construindo sobre ela durante o caminho. Quando criamos uma definição dessa essência e acreditamos saber o que ela é, acabamos de perdê-la, quando achamos que não a conhecemos, acabamos de abrir a porta da consciência para ela. 
Lao Tse entende que todos temos essa sensibilidade e faro intuitivo dentro de nós; para lançar mão dele, basta que sigamos essa nossa natureza interior. Sua filosofia prega que, assim como a água do rio sempre encontra o caminho para o oceano, quando deixamos que a natureza interior mais íntima guie nossos passos, intuímos por onde prosseguir, até chegarmos ao grande oceano de consciência para o qual fomos moldados. Esse oceano onde o rio da individualidade se integra e dissolve é nada mais, nada menos, que a essência não manifestada de onde viemos, de onde tudo vem, todo o tempo. 
Diz-se na China que Lao Tse era guardião dos manuscritos reais, o equivalente a um bibliotecário em sua época. No final da vida, resolveu se retirar da cidade para meditar nas montanhas. Ao sair, um guarda de fronteira o reconheceu e pediu que deixasse registrada sua sabedoria em um livro. Ele então, que nunca havia escrito nada, sentou-se e escreveu os 81 pequenos poemas do Tao Te King, que sintetizam a sabedoria do taoismo e da China tradicional. 
Nos poemas ele enfatiza a importância de nos esvaziarmos para estarmos disponíveis ao crescimento e evolução e de adotarmos o caminho da brandura para chegar longe. Em certo ponto ele diz “Nada no mundo / demonstra mais suavidade e fraqueza do que a água. // No entanto, / dentre as coisas que atacam o duro e o forte, / nada a supera ou pode barrá-la. // Portanto, o fraco vence o forte, / a maleabilidade vence a rigidez.”  
A água acabou se tornando símbolo do taoismo e da obra de Lao Tse, com todos os seus atributos, de suavidade, sutileza, intuição, fonte da vida e ilimitação de forma. 

Fonte: http://pedrotornaghi.com.br/blogger/?page_id=3065

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